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terça-feira, 10 de agosto de 2010

-" O lado oculto do 25 de Abril "

Batalhas Esquecidas
NA MARINHA DO MALAWI, AO SERVIÇO DE PORTUGAL

Durante seis anos, o Antigo Regime dominou por completo a armada de um país que faz fronteira com Moçambique, numa guerra secreta que deu muitos frutos.

Serafim Lobato
(Jornalista, Licenciado em História, Mestre em estudos
Portugueses pela Universidade Aberta)

A Marinha de Guerra do Malawi foi comandada e orientada, entre 1968 e 1974, por oficiais da Armada portuguesa. Estes não representavam oficialmente, o executivo de Lisboa. Agiam como “desertores”, classificação informal que adquiriam ao “abandonar” a “Briosa” para se transferirem, de armas e bagagens, para o “outro lado”. Na realidade, estavam em total consonância com a hierarquia castrense. Ao serviço do Estado lusitano.
Foi a operação “secreta” mais prolongada e eficaz do Antigo Regime nas colónias portuguesas, nos 13 anos de guerra. Não existem documentos oficiais já desclassificados que confirmem esta aventura longa de sete anos. São os protagonistas que as descrevem.

O Malawi, a antiga colónia britânica do Niassalândia, não tem saída para o mar. A sua grande bacia hidrográfica é o lago Niassa, que serve três países – além daquele, também a Tanzânia e Moçambique, hoje todos independentes. Na altura, a questão central era de natureza militar. Deste modo, o gigantesco lago africano adquiriu, nesse enquadramento geo-político, uma relevante importância estratégica.

Os marinheiros portugueses agiam como desertores autorizados

O Malawi e a Tanzânia ascenderam à independência, mas optaram por vias diferenciadas. O primeiro, tendo Hastings Kamuzu Banda como primeiro Chefe de Estado, seguiu o nacionalismo conservador pró-ocidental. O segundo, liderado por Julius Nyerere, defendeu o nacionalismo progressista, terceiro-mundista, buscando apoios, essencialmente, na antiga União soviética e na China. O regime tanzaniano era o “santuário” de retaguarda da FRELIMO (a Frente de Libertação de Moçambique), que lutava pela independência do território desde 1964.
A operação “encoberta” iniciou-se em 1968. Após negociações, Portugal e o Malawi acertaram a troca de uma lancha de fiscalização pequena (LFP), sediada em Matangula (Lago Niassa), para um porto do mesmo lago em Nkata Bay.
No dia aprazado, realizou-se uma cerimónia especial em Metangula – o nome oficial da povoação era Augusto Cardoso – para a transferência da lancha. Um documento oficial – aliás, o único que foi possível consultar – existente no Arquivo da Marinha de Guerra regista a cerimónia.
Em augusto Cardoso, a “castor”, que foi baptizada com o nome de John Chilembwe (nome de um herói do país), foi entregue na presença de entidades dos dois países.

Socorremo-nos de citações copiadas do documento, pois não nos foi permitido fotocopiar: “A 5 de Agosto de 1968, em Augusto Cardoso/Metangula, e conforme notas diplomáticas tomadas entre Portugal e o Malawi”, foi a lancha de fiscalização “castor”, da Armada portuguesa, transaccionada “por empréstimo”.
Na cerimónia, Portugal estava representado pelo então comodoro Tierno Bagulho, Comandante Naval de Moçambique, e “em representação” do governo do Malawi, aleke Banda, ministro da economia e presidente do ‘Malawi Youngers Pioneers’. Tudo muito formal.
À margem desta história, recorde-se que Tierno Bagulho, que ocupou depois o cargo de Presidente do Supremo Tribunal Militar, foi um dos três oficiais-generais das Forças Armadas que se recusaram, em Março de 1974, após o “Golpe das Caldas”, a participar no chamado “Beija-mão” ao então presidente do Conselho de Ministros, Marcello Caetano. Os outros dois foram Costa Gomes e António de Spínola, então, respectivamente, os cargos de chefe e vice-chefe do Estado Maior General das Forças Armadas. Os três já faleceram.

O comando da nova lancha ‘John Chilembwe’ vai ser assumido por um jovem oficial “desertor” da Armada portuguesa: Manuel Agrelos, já investido nas novas funções aquando da cerimónia em Matangula. É, agora, primeiro-tenente da Marinha do Malawi, quando o seu posto na Armada portuguesa, era segundo-tenente da Reserva Naval. Manuel Alexandre de Sousa Pinto Agrelos, engenheiro, era o comandante da lancha ‘Mercúrio’. Cumpria o serviço militar em Moçambique
Já civil, Agrelos descreveu a sua “aventura” num relatório privado que fez, nos anos 80 do século passado, e entregou à comissão COLOREDO (a comissão da Marinha de Guerra, que recolheu dados e informações sobre a actividade nas antigas colónias, que, estranhamente, se encontram ainda sob a chancela de classificados.
Na cerimónia de Metangula, o oficial português mandou arriar a bandeira, chamava-se ‘Francisco Freire’ e o “oficial malawiano que a recebeu e mandou içar fui eu”, referencia Agrelos no seu relato.
Com o comandante da lancha, seguiram o marinheiro telegrafista Mário Fernandes e o cabo fogueiro Martinica, que foram graduados, respectivamente, em segundo e primeiro sargentos da Marinha do Malawi. O resto da guarnição pertencia aos ‘Young Pioneers’, uma espécie de “guarda pretoriana” do regime ditatorial de Hastings Banda.

Manuel Agrelos acabou por ser virtual ministro da Marinha do Malawi

Agrelos faz questão de assinalar no relatório que, entre os presentes na cerimónia estava o engenheiro Jorge Jardim – pai da socialite Cinha Jardim – que ali se encontrava com o estatuto de cônsul honorário do Malawi em Moçambique. Jardim ficou, aliás, o garante do pagamento do salário a Manuel Agrelos, depositando-o numa conta bancária a que o comandante da lancha tinha acesso.
Manuel Agrelos continuava, no entanto, a depender da hierarquia da Marinha de Guerra portuguesa e era a esta que prestava contas por canais informais.

Na sua nova função, Manuel Agrelos foi algo mais que um simples oficial comandante de uma pequena lancha. Na realidade, tornou-se no ministro da Marinha malawiana. Sem qualquer apoio, sem experiência, montou toda a estrutura de informação que veio a servir os seus sucessores.
O “agente especial” português participou em algumas reuniões do Conselho de Ministros do Malawi e teve vários encontros com o então chefe de Estado do país, Hastings Banda.
Do ponto de vista estratégico-militar, graças a esta lancha, Agrelos controlava, em grande medida, o movimento de embarcações no Lago Niassa. Incluindo, portanto, as que serviam de apoio logístico à FRELIMO.

Quando se dá o 25 de Abril, as relações com o Malawi tornam-se distantes

Agrelos teve contactos mais “profundos” ou mais “ligeiros”, com altos dirigentes da FRELIMO, incluindo Eduardo Mondlane, mas o actual presidente da Federação Portuguesa de Golfe não se prontificou, até agora, a contar o “muito que soube”.
Mo relatório, assinala um dos aspectos menos conhecidos da “parceria” que envolvia a passagem da embarcação que comandava para o país: a flotilha de Metangula passava a ser abastecida por gasóleo do Malawi.

A Lancha de Desembarque Média (LDM) que ia buscar o combustível levava um logótipo da SONAP e os membros da guarnição “fardas” da mesma companhia petrolífera portuguesa.
A sua missão “tipo James Bond” decorreu, pacificamente, até que terminou a comissão de serviço em 1969.
Manuel Agrelos pertenceu ao 9º Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval (CFORN). Do seu curso, destacado para idêntica função naquela colónia como comandante de uma LFP, foi seu camarada de armas o antigo ministro Pedro Lynce de Faria.
Assim, o “agente especial” Agrelos deu lugar a outro oficial da Marinha da Reserva Naval. Outros se seguiram, incluindo alguns da Legião Naval, até ao 25 de Abril de 1974. Entretanto, o Malawi já adquirira duas lanchas portuguesas. A segunda emprestada foi a ‘Regulus’, rebatizada como ‘Chiluza’. Eram dois, agora, os oficiais lusos em actividade.

Com a revolução de Abril, a função do “James Bond” português esteve quase a terminar em tragédia.
O papel de “Ministro da Marinha" exercido por portugueses foi perdendo validade. Quando se dá o 25 de Abril, as relações tornaram-se distantes. Os comandantes das lanchas eram agora oficiais fuzileiros.
O primeiro, mais antigo, já veterano de guerra, chamava-se Lhano Preto e dirigia a ‘John Chilembwe’. O segundo, mais “marreta” e com “pouco tempo de mato”, era o subtenente Berbereira Ribeiro Moniz. Pertenciam ao 9º Destacamento de Fuzileiros Especiais.
As lanchas navegavam com cadetes dos ‘Young Pioneers’. Estabelecera-se o distanciamento entre Blantyre e as autoridades moçambicanas. Os tempos estavam a mudar.

Os salários dos agentes portugueses eram pagos por Jorge Jardim

A revolução portuguesa transtornou definitivamente os planos de Hastings Banda. O regime democrático passou a ser olhado de soslaio e os oficiais portugueses constataram essa mudança.
Em Julho de 1974, são chamados à capital malawiana. Recebem a indicação da embaixada portuguesa de que o melhor é voltarem a ter um passaporte português e se prepararem para o pior. Aliás, um dos oficiais, Lhano Preto, esteve retido momentaneamente nesse período, mas acabou por ser mandado seguir para Monkey Bay. Quando chegaram ao local verificaram que as lanchas tinham desaparecido. Vieram a saber que os cadetes as fizeram seguir para uma baía mais a sul, onde se esconderam

As “manobras” do regime de Banda foram comunicadas ao comando da esquadrilha do Niassa, que, por outro lado, recebera a indicação de Lisboa para fazer a entrega, formal e definitiva, das duas lanchas ao Malawi.
Foi nesta situação de ambiguidade que o comandante da esquadrilha, o então primeiro-tenente da Marinha Ribeiro Ferreira (hoje vice-Almirante na reserva) decidiu zarpar para resgatar os oficiais que julgava detidos.
Em acto belicoso, entrou em Monkey Bay, preparado para uma batalha naval com o apoio de duas lanchas de fiscalização, uma pequena Lancha de Fiscalização de Pesca, uma Lancha de Desembarque Média e um destacamento de fuzileiros.
Não foi preciso usar a força. Afinal, os portugueses já estavam em liberdade e aguardavam na praia de Monkey Bay a chegada da frota para se fazer a transferência pacífica das lanchas.

Os “agentes portugueses” regressaram às suas unidades. Jorge Jardim passou a fora da lei e refugiou-se no Malawi. Era agora “persona non grata” do novo regime português.
Findara deste modo, a nossa missão no Malawi. A maior parte dos nossos “Bonds malawianos” ainda é viva. São hoje pacatos cidadãos que recordam essas memórias…
Serafim Lobato

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